O shounen que trava uma luta entre a manutenção da própria identidade e a da figura familiar perfeita

Spy X Family é um dos lançamentos de sucesso esse ano no Brasil. O mangá de Tatsuya Endou é publicado no Japão pela revista Shounen Jump + desde 2019, mas recentemente chegou oficialmente em terras brasileiras pela editora Panini.
Contando com cinco volumes lançados até então no Japão e dois no Brasil, Spy X Family conta a história de um espião chamado “Twilight”, que sempre busca agir sozinho e, por isso, evita laços emocionais que possam atrapalhar seu trabalho. Porém, o que ele não imaginava era que, em sua nova missão, ele teria que construir uma família para se infiltrar em um colégio tradicional e conseguir as informações que precisa. A partir dessa premissa o enredo se desenvolve com uma mistura bem balanceada de ação e comédia. Principalmente porque sua filha e sua esposa não são pessoas nem um pouco tradicionais.
Os primeiros capítulos do mangá abordam justamente o desespero de Twilight para conseguir adotar uma criança que corresponda às expectativas do colégio e que, ao mesmo tempo, não cause problemas para o seu trabalho. O que ele não esperava é que a filha que ele adotou (em uma instituição clandestina) é paranormal e tem o poder de ler mentes.
Em relação à sua esposa a situação também não é muito diferente. Completamente ao acaso, Twilight (agora sob a identidade de Loid Forger) se encontra com Yor Briar, que coincidentemente também está em uma corrida contra o tempo para encontrar um homem que finja ser seu namorado em uma festa e, assim, não decepcione sua família. Porém, da mesma forma que Loid tem seu segredo, Yor também guarda sua verdadeira identidade: ela é a assassina conhecida como “Thorn Princess”.
Identidade

Além de toda a parte divertida do mangá e da arte de excelente qualidade, o que realmente chama atenção nessa história é a questão da identidade. Todos três personagens principais, Loid (o espião), Anya (a telepata) e Yor (a assassina) escondem suas verdadeiras identidades e origens um dos outros por trás de personas, tudo em prol do funcionamento da família.
Inclusive, já no primeiro volume, vemos diversos momentos em que Loid, que sempre esteve acostumado a estar sozinho, quase acaba revelando sua identidade de espião acidentalmente. A grande sorte de Loid é que Yor, por estar constantemente preocupada com a manutenção de sua própria identidade, acaba não notando esses deslizes.
Outra referência interessante sobre essa questão é o uso de máscaras. Loid aparece em algumas missões utilizando máscaras hiperrealistas que copiam rostos de outras pessoas para se infiltrar e conseguir informações. Isso nos remete a questão do uso de máscaras para resguardar uma identidade, algo que antes ele fazia apenas durante um curto período de tempo em uma missão, mas agora precisa fazer 24h por dia.
Mas o mais interessante é o fato de Anya, uma criança de seis anos, ser a única que, por ler mentes, tem consciência de quem são Loid e Yor de verdade. Isso desperta a curiosidade de como será trabalhada essa questão ao longo do crescimento de Anya. Afinal, se não é fácil para Loid e Yor, que são adultos, atuarem sob suas máscaras para esconder seu Eu de verdade, imagine para uma criança tão pequena, que além guardar segredos tão perigosos ainda se preocupa em esconder o seu próprio?
Família

A questão familiar obviamente entra como o ponto principal da história, como já indica o título e a sinopse. Mas, ainda assim surpreende o fato de que o mangá vai além, trazendo eventuais críticas sobre a normatividade familiar.
De início, isso já se mostra quando a missão de Loid requer que ele tenha uma família perfeitamente tradicional para poder se infiltrar no colégio de elite e se aproximar de seu alvo da investigação. Ao longo de todo o processo de formação da família Forger e preparação para a entrevista de admissão de Anya no colégio, o elemento central é a mentira. A mentira, nesse caso, se apresenta em virtude da manutenção de uma falsa moralidade. E, em um cenário onde a boa imagem vale mais do que a honestidade, ela não é exclusiva apenas a família falsa dos Forger.
Antes mesmo de Yor se tornar parte da família, já na apresentação da história base dessa personagem, vemos também referências à ideia do casamento como uma garantia de caráter. Yor Briar possui 27 anos e lida com a pressão constante de ter que arranjar um parceiro e se casar antes que seja “tarde demais”. Essa pressão vem tanto de seu irmão como de todas as suas companheiras de trabalho, que explicitam e reforçam em seus discursos toda uma estrutura social vigente.
Inclusive é após ouvir uma conversa de suas colegas de trabalho que Yor resolve mentir sobre não ter um namorado. Uma de suas colegas conta o caso de uma mulher solteira de 30 anos que foi denunciada como “suspeita” para a polícia, já que uma mulher só estaria sozinha nessa idade se estivesse envolvida em algo ilegal. Justamente por Yor ser secretamente uma assassina, ela definitivamente não poderia correr esse risco.
“Aposto que é uma espiã infiltrada para diminuir a taxa de natalidade do nosso país.”
Sociedade

Outro ponto que me chamou atenção durante a leitura do mangá foi a ambientação da história. Tatsuya Endou criou um mundo fictício que nitidamente possui influências germânicas e referências à Guerra Fria. Já no primeiro volume, que aborda pouco essa questão, é possível perceber que o cenário político de Spy X Family é de uma guerra por informação entre dois lados.
As referências germânicas são presentes tanto nos nomes dos personagens, como nos países: “Ostania” (com Ost significando Leste em alemão), que é onde se passa a história, e “Westalis” (com West significando Oeste em inglês). Ambos os países são uma referência clara à cortina de ferro que dividiu a alemanha durante a guerra fria, sendo Ostania notavelmente baseada na República Democrática Alemã (Alemanha Oriental).
Pode-se dizer que ainda falta ser mais trabalhada essa questão da sociedade e política de Spy X Family. E é bem provável que será, já que em uma entrevista ao site alemão AnimeNachrichten o próprio autor fala sobre essas referências e confirma que ainda tem muita história para rolar!
“Quando se trata de espionagem, você pensa na era da Guerra Fria! Com países reais a história teria ficado limitada. Portanto, o mangá é baseado nisso, mas apenas usa isso como um modelo e o cenário mesmo seja ficcional. Eu acho que isso pode fazer a história e a ambientação do mangá mais interessante.”
Tatsuya Endou em entrevista para AnimeNachrichten
Concluindo…
Após a leitura é possível entender porque esse mangá com pouco tempo de lançamento já cativava o público e fazia sucesso. Não é difícil ver feedbacks bastante positivos considerando que o mangá é bem balanceado entre conflitos e elementos cômicos. A história é engraçada e leve, mas ao mesmo tempo capaz de gerar boas reflexões.
Se você busca apenas um mangá shounen de ação com bastante comédia para se distrair essa é uma boa opção de leitura. Ao mesmo tempo, se você busca uma leitura com referências políticas e eventuais críticas sociais também é uma boa dica, apesar do elemento central não ser esse.
Também é bastante possível se identificar com os dramas familiares, mesmo que esses sejam exagerados para fins de comédia, e com os dilemas enfrentados pelos personagens. Afinal, mesmo sem ser espiões, telepatas ou assassinos, todos temos segredos escondidos por trás de nossas próprias máscaras!
Em um embate entre resguardar sua própria identidade e manter uma família perfeita, o mangá realmente traduz perfeitamente seu título: Espião X Família.
Onde ler?
- Disponível oficialmente em Inglês pelo aplicativo Manga Plus
- Compre o volume 1 em português pela Amazon
- Compre o volume 1 em português pela loja da Panini