A fome que habita – Instinctu Hara

[237] “A fome como expressão característica do instinto de auto-conservação é, sem dúvida, um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que influenciam o comportamento humano’’.
Carl Jung
Não são poucos os animes que tratam da questão da fome e a comida: Tokyo Ghoul, Shingeki no Kyojin, Kimetsu no Yaiba, Yakusoku no Neverland,Toriko, Shokugeki no Souma estão entre os títulos mais famosos que levantam a questão como objeto central, seja de maneira explícita ou não.
Sabemos que o instinto da fome é um dos mais primitivos do ser humano, estando relacionado a autopreservação, uma necessidade básica vital. Como sempre levantamos aqui no blog, a psique humana em sua complexidade, abrange um imenso campo das linguagens simbólicas onde podemos afirmar que tudo é metafórico. Não sendo diferente portanto com a questão instintiva do comer.
Qual a carga simbólica contida nesse instinto? A fome avassaladora, incontrolável, insaciável, que atribui poderes e forças ritualísticas ligadas ao sagrado. Como a psique enxerga essa questão? Como nosso comportamento ao longo dos anos em relação ao ato de comer influência no “modus operandis” de nossa estrutura social? Ainda existe em nós aquele ser primitivo que busca apenas sua a satisfação pelo estômago? Veremos todas essas questões a seguir, em um artigo dividido em três partes (Hara, Hunger e Hunter) para compreender a totalidade desse fenômeno enigmático. Caminhe conosco por esse apetitoso artigo.
Hara

Antes de adentrarmos no objeto de estudo em si (a fome) devemos focar e dar uma breve explanação sobre aquele que confere significado ao objeto (o corpo/mente), pois é através deste que os símbolos e sensações se manifestam, afinal somos seres conscientes e sencientes. Portanto começaremos do inicio, o centro.
A região abdominal possui uma grande importância simbólica e fisiológica, infelizmente um dos grandes “pecados” do desenvolver da ciência iluminista e os métodos de análise metodológicos, foi colocar em pedestal a mente consciente e a razão como centro e poder máximo do ser humano, deixado de lado a região inferior de nosso corpo, o associado algo “inferior” no sentido pejorativo da palavra.
Essa região é acompanhada por igual descaso aos instintos primitivos, tomados como algo sujo, pecaminoso e sombrio. O próprio emprego da palavra primitivo não expressa algo bom em nossa linguagem e por muito esquecemos seu significado como algo primevo, original, relacionado a nossas raízes. Deste modo a região superior do corpo, contou com total ênfase nos últimos séculos, a cabeça, braços e mãos se relacionam ao saber, razão, fazer, construir, criar; enquanto as regiões mais baixas, ligadas que se ligam aos atos de locomoção, sexualidade e defecação foram submetidas ao simples papel de coadjuvante no processo humano.

Entretanto observamos em culturas onde ainda se preservam raízes de povos antigos (primitivos), a importância das regiões inferiores do corpo no desenvolvimento psicossocial do ser humano. A exemplo dos povos do oriente que trazem alguns conceitos interessantes sobre a questão.
Na perspectivas desses povos a região abdominal tem um papel de extrema importância e assume diversas características e funções (fisiológicas, emocionais, energéticas e espirituais). Na cultura Japonesa, a essa região se dá o nome de Hara, o centro de força e energia vital do corpo humano, na mesma região corporal temos o Dan Tien dos Chineses, os Chakras Muladhara (o primeiro), Swaddhisthana (o segundo) e Manipura (terceiro) dos Hindus e o Chakra secreto dos Tibetanos. Em comum todos estes espaços são considerados o eixo de equilíbrio do ser humano e centro energético onde repousa o Ki, Chi, Prana (força vital). Daí a importância desses conceitos aos artistas marciais, praticantes de meditação e de alquimia interna.
Nessa correlata região encontramos órgãos e estruturas vitais, o Diafragma por exemplo é o principal músculo responsável pela respiração, na região do assoalho pélvico, no baixo ventre temos o músculo Ílio-psoas, o único no corpo a conectar diretamente nossa coluna (eixo central/ Kundalini) aos membros inferiores, sendo considerado o “músculo da alma”. A ciência atual através de estudos cinesiológicos e biomecânicos já compreende hoje a importância no campo físico de tal centro energético. O Core, ou “power house”, é o nome dado a um conjunto de 29 músculos da região lombo-pélvico-quadril responsável pelo centro de gravidade, por onde começam todos os movimentos, novamente como eixo primevo, inicial, primitivo.

Os órgãos: estômago, intestino, fígado, rins, vesícula, que administram funções vitais para homeostase do organismo também se encontram nesta região. O intestino grosso é o segundo local com o maior número de neurônios após o cérebro, esse órgão possui uma capacidade neural quase autônoma, reconhecido pela ciência como um segundo cérebro no corpo.
A importância dessa região se dá desde nosso nascimento, não só fisiologicamente, mas psicologicamente. O bebe, cujo o ego ainda está em desenvolvimento, imerso no inconsciente e na vida vegetativa de seu organismo, recaída sua atenção sobre a região abdominal. O ato de comer, alimentar, estar saciado ou não, determina o estado psíquico dessa fase, onde saciar é relacionado à satisfação, prazer, conforto e o contrário a fome, é insatisfação, incômodo. O mesmo ocorre com o homem primitivo, anímico, que se move pela fome, onde um ambiente sem comida, significa morte. Um dos símbolos mais antigos da humanidade o Uroboros, representa bem essa relação, a cobra que come a própria cauda, retrata o estado animal da natureza, onde todas as criaturas se devoram, é o estado psíquico do primitivo, onde o mais fraco é devorado e o forte o devorador.

A fome e alimentação são propulsores iniciais da humanidade, o homem primitivo nômade, está sempre em busca do alimento, suas funções eram divididas entre caçar e coletar comida e tudo que necessitava advinha da natureza. Essa correlação existe também no recém-nascido, a Mãe simboliza a natureza, ela é antes de objeto erógeno, fonte de alimento para o bebe, nutrição, meio pelo qual se nutre, ganha força, conhecimento e assimila o mundo externo. Não é à toa que as primeiras civilizações cultuavam a imagem da mulher de seios e corpos fartos como divina. Os mitos antigos são exemplos da importância do alimentar, ingerir, assimilar para as civilizações, como no caso de Cronos o Pai que devora os filhos ou essa passagem retirada de um mito Hindu:
Ele considerou: aqui estão agora os mundos e os filhos dos mundos; agora quero criar alimento para eles! E ele chocou as águas, surgindo delas, por serem chocadas, uma forma. A forma que surgiu, esse é o alimento.

Uma coisa devemos ter em mente sobre o alimento, ele é fonte de saber, em sua ampla significação. A palavra “saber” vem do verbo em Latim Sapere, que significa ter gosto, perceber pelo sentido do gosto, raiz também da palavra sabor. Portanto o sabor é também forma de conhecimento. Sapiens (Sábio) adjetivo ligado ao nome de nossa espécie “Homo Sapiens” significa aquele que tem bom paladar, que sabe, entendedor. Nessa perspectiva as raízes de nosso intelecto parecem estar interligadas ao comer, ingerir e mais importante saborear. Pois como dito, essa é uma forma do homem conhecer o mundo e dar sentido à sua existência, em uma época do primitivo, onde o que importa é o ciclo de devorar e ser devorado.
Nesse estado psicológico primitivo, o ingerir é ligado ao assimilar, sentir o sabor, saber sobre algo, se apropriar de informações, sensações, o comer é uma conscientização a um nível primitivo. Por esse motivo a simbologia do estômago é importante, pois este digere, fragmenta o saber e o incorpora. Não à toa que a gastrite nervosa, causadora de úlceras estomacais é uma questão psicossomática relacionada ao estado de nervosismo, onde não se consegue aceitar um fato de bom grado, ou, há uma preocupação extrema, portanto, não “digerir’’ aquele acontecimento ou ideia, causa um estado de ansiedade, raiva, medo. Lembramos também que ao sentirmos medo, ou raiva, uma incômoda sensação surge na região central do corpo, popularmente chamada de frio na barriga. Não só em casos de perigo, mas situações que nosso estômago se embrulha, como querendo dizer: isso é uma má ideia, ou um tipo de intuição que pressente algo estranho. Talvez uma herança de nossos ancestrais, que nos primórdios para conseguir alimento haveriam de ter uma mistura de precaução, intuição e ação, frente aos perigos devoradores que os aguardavam. Devemos lembrar que a nossa espécie estava na base da cadeia alimentar, não éramos os mais fortes, os mais rápidos ou mais inteligentes, mas algo nesses anos mudou, não?

A imagem simbólica da Mãe está diretamente relacionada ao alimentar, ao estágio de existência psicológica de “simbiose” entre o embrião e a mãe, que o psicólogo Erich Neumann deu o nome de fase Uroborica.
Aguarde o próximo artigo para continuarmos essa apetitosa jornada por um dos instintos mais primitivos do ser humano, a fome! No próximo artigo iremos destacar como a raça humana se desenvolveu intelectualmente após uma série de eventos associados ao ato de cozinhar, um fato simples que esconde em si uma alquimia secreta.