O fascínio pelo arquétipo do herói e a ameaça de sua sombra como modelo social.
My Hero Academia é um obra em mangá escrita e ilustrada por Kōhei Horikoshi e adaptada para Anime em 2016. A série se firma como um dos animes mais populares e influentes dos últimos anos. Os eventos acompanham a história do jovem Midoriya como um aspirante a Herói profissional em um mundo onde super poderes são parte do cotidiano.
A fórmula narrativa do super-herói, parece ser o segredo para o sucesso de qualquer processo criativo da última década. Após o estrondoso êxito da Marvel em seu universo cinematográfico, foi desencadeado um coletivo interesse pelo tema, que não demorou a chegar em outros setores de entretenimento.
Embora dialogue com a atualidade, a imagem do herói como símbolo já é antiga na história humana. O conto mais antigo da humanidade (2.100 a.C), escrito em forma de poesia, A epopeia de Gilgamesh, narra a história do rei Gigante, que em seu caminho enfrenta os mais diversos desafios como rei e herói de seu povo. Ele representa o novo, a força, coragem, juventude, esperança e orgulho de sua cultura.
A questão central dessas narrativas gira em torno do heroísmo contido dentro deste arquétipo. O princípio do ser perfeito, aprimorado, mais potente, que assume as melhores qualidades físicas e mentais do ser humano, serve como síntese de superação frente aos obstáculos e imprevistos da vida.
Dentre contos deste tipo encontramos os mais diversos heróis lendários, Hércules, Aquiles, Rei Arthur, Parsifal, Huangdi, Sinbad, Maui. Em comum todos possuem a força necessária para contrariar até os mais poderosos Deuses, suas façanhas em vida os tornam dignos de receber o prefixo Super em seu título de Herói.
Com tempo e desenvolvimento histórico, esses seres incríveis foram inseridos mais profundamente na sociedade, com tramas mais realistas envolvendo diálogos políticos, conflitos étnicos, guerras mundiais e conspirações secretas, tornando o herói, embora agora Super, mais humanizados, sujeitos ao erro e problemas sociais.
Outra evolução interessante do conceito envolve uma sociedade globalizada, onde não somente um herói se destaca, mas em um mundo conectado, diversos seres extraordinários podem coexistir, representando sua cultura, sendo símbolo de muitos. A sacada dessa premissa está contida no chavão: “Todos podem ser heróis de suas vidas e enfrentar os desafios diários”.
Esse é o conceito de universos como Marvel e DC, onde diversos heróis, cada um com suas particularidades e dramas pessoais, se unem no melhor da humanidade para salvar o mundo da mais terrível ameaça.
Tanto clichê, quanto enigmático já está mais que nítido que essa narrativa evoca as maiores qualidades e sonhos do coletivo humano. Afinal quem nunca quis ter habilidades como superforça, poder de voo, invisibilidade, telepatia, acompanhados de senso ético, bondade, altruísmo e confiança infinita.
Como consequência do interesse popular pelo símbolo do super-herói, surge a cada dia uma aposta nova, em busca do fiel e consumidor público. Temos como exemplo a recente série Watchmen com seu ar mais sombrio, a aclamada série The Boys do Primevideo, com sua veia cômica e crítica, e a aposta da Netflix com The Umbrella Academy. O que não falta é investimento nesse setor. Não à toa, já que as estimativas de lucro para o mercado de entretenimento e mídia segue um crescimento em média anual de 4,3% de 2018 a 2023, e chegará a uma receita de US$ 2,6 trilhões.
Aproveitando essa corrente temos My Hero Academia com sua proposta incomum e reflexiva, característica da típica profundidade de sentido, o qual o povo Japonês atribui às coisas. Na história mergulhamos em um mundo fictício, onde mais de 80% da população humana desenvolveu algum tipo de habilidade especial, digna dos poderes dos maiores heróis dos quadrinhos, enquanto por outro lado, alguns nascem com peculiaridades tão bizarras, que tem pouco utilidade prática, sendo até motivo de bullying. Já se pode imaginar como aqueles que nascem sem nenhuma habilidade são vistos ou tratados.
O ponto diferencial da obra, em relação a outras do gênero, está em como a sociedade mantém seu funcionamento com todas essas condições especiais soltas mundo afora. Em resumo os problemas, embora em maior escala, são os mesmos que sofremos hoje: roubos, assassinatos, máfias, preconceito, discriminação, cobiça, eugenismo. Mesmo sendo a humanidade dotada de poderes além do imaginado, as pessoas ainda seguem normalmente suas vidas, seus empregos e tarefas diárias, cada um com sua “individualidade” como é chamado o poder específico de cada indivíduo na série.
Obviamente que para combater criminosos dotados de poderes sobre-humanos, super- heróis ainda são necessários, pois não são todos, mesmo com aptidão, que desejam sair pelo mundo combatendo o mal. Em consequência uma das profissões de maior status da sociedade é o Herói. Na obra existem diversas escolas espalhadas pelo mundo, que tem como objetivo o treinamento e formação de heróis, que no futuro são pagos por instituições e trabalham junto ao governo para atuar contra o crime.
Do outro lado da moeda temos vilões, indivíduos em sua maioria párias da sociedade, que por motivos diversos decidem optar pela criminalidade. Destarte vale ressaltar que tais indivíduos também possuem poderes, e são muitas vezes extremamente talentosos, dificultando o trabalho dos heróis. Até certo momento da história do anime, os vilões não possuem uma organização, em suma pela sua confiança e egoísmo são indivíduos que agem por conta própria. Os crimes são isolados e sem nenhum objetivo claro, embora pareça um caos, a sociedade se mantém entre o equilíbrio dessas forças antagônicas.
A principal crítica que a série aborda, se trata sobre os padrões e cobranças impostos pela sociedade, e aos valores que a mesma adota, que se refletem no símbolo do herói. Em dado momento da série surge o personagem Stain, um vilão que ataca somente heróis profissionais, pois considera que a sociedade sofre com o excesso destes, onde poucos realmente estão preocupados em salvar as pessoas, sendo sua única motivação a fama, reputação e o dinheiro.
Afinal embora a imagem do herói simbolicamente retrate o melhor da humanidade, o orgulho e força coletiva, por outro o mesmo carrega em seu extremo oposto, os excessos da vaidade, egocentrismo, teimosia e falta de sentido de si mesmo. É dito pouco sobre tais qualidades obscuras do herói, estas permeiam o campo subconsciente e não verbal, entretanto são posturas adotadas e compartilhadas no meio social.
O egocentrismo presente nessa figura parece ser algo valorizado atualmente, como uma qualidade que se relaciona ao orgulho pessoal. Essa linha tênue entre orgulho e crescimento pessoal aparentemente não se diferencia em uma sociedade que cultiva a competição, imagem, vitória e individualismo acima de tudo. Tais objetivos se tornaram mais importantes que valores como o respeito, a comunhão, o sentido, a vida.
Sofremos uma forte pressão social em ser a todo momento um incessante super-herói, aqueles que minimamente não se colocam na busca por esse padrão, são rejeitados, esnobados e tratados como subproduto. Essa pressão se manifesta através de padrões estéticos, classes sociais, profissões, comportamentos, que não permitem desvio de postura. A cobrança com corpo perfeito, emprego perfeito, casa e carros perfeitos, subterfúgios que escondem um verdadeiro abismo, o qual queremos ignorar. É necessário espaço em nossa sociedade para o fracasso, a tristeza, as particularidades, amparados de forma natural, como parte de um processo.
Esse momento de introspecção, nas histórias que traz sentido a vida do herói, ele se modifica e abandona sua imagem de perfeição na busca pelo equilíbrio interno e o despertar de si mesmo, como um indivíduo único. Que foge aos padrões, se realiza, decide quem é, e para onde vai.
A valorização em excesso da perfeição e o sucesso cego, poderia ser analisada como uma doença social, cujo a contraparte cresce furtivamente quando ignorada. Deste modo nos deparamos de tempos em tempos com os demônios que queremos conter, seja um indivíduo à margem da criminalidade, uma doença, um colapso econômico, uma guerra civil, em algum momento, essa força surge para nos lembrar de sua existência.
Os Heróis ou Super-Heróis, sempre serão um modelo a seguir, é um importante símbolo de esperança e mudança, sua conduta positiva revela o melhor do ser humano. Todavia estipular um modelo padrão, para todas as situações, sem um senso crítico sobre as ações tomadas, nos torna apenas zumbis, em sua busca por satisfação pessoal, pelo prazer da carne que um dia foi. Devemos decidir se seremos zumbis super-poderosos, ou modelos de realização humana na plenitude de sentido que a palavra traz.
A crítica do anime está nas aparências, na superficialidade do símbolo e a escassez de aspecto um humano deveras importante, a individualidade, típica da diversidade cultural, que nos permite ser quem realmente somos, assumindo defeitos e qualidades.