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II- HOMUNCULUS
Espírito na Garrafa
A série Full Metal conta com diversos núcleos e personagens, por exemplo, o núcleo Militar, o de Resembool, dos Ishvalianos e claro, as figuras mais enigmáticas do Anime, os Homúnculos. Os Homúnculos são os antagonistas da história , eles articulam as coisas por trás das cortinas. Embora sejam vilões, isso não impede uma identificação de nossa parte com esses seres artificiais, criamos empatia e afinidade com cada um deles, afinal, quem não ficou com sentimento de tristeza, compaixão ou vazio quando ocorria a morte de um Homúnculo na série. Mas o que é um Homúnculo? O que ele representa na história? Qual sua importância para Alquimia? Um conto antigo pode nos ajuda a compreender o que é esse “ser” cujo nome significa pequeno homem ou homenzinho.
” Era uma vez um pobre camponês, ele tinha um filho único do qual desejava que estuda-se em uma universidade. O filho a custas, foi enviado a universidade, entretanto com o pouco dinheiro para pagar, o menino teve de voltar para a casa antes de concluir seus estudos. Começa então a ajudar seu pai a trabalhar na floresta. Certo dia, na hora do repouso após o almoço, pôs-se a perambular pela floresta, até chegar a um antiquíssimo e imenso carvalho. Ouviu então uma voz que saía do chão, chamando: Me solta, solte-me daqui! O menino percebeu que a voz vinha de baixo da árvore e então começou a cavar entre as raízes e encontrou uma garrafa bem fechada; sem dúvida era dela que saia a voz. Ele tirou a rolha e um espírito saiu da garrafa, logo atingiu metade da altura do carvalho.O espírito dirigiu-se ao menino e disse: ” Eu fui trancado por castigo! Sou o poderosíssimo Mercúrio e agora devo quebrar o pescoço de quem me soltou.O rapaz ficou apavorado, e em um instante pensou em uma saída. Qualquer pessoa, disse ele a Mercúrio, poderia afirmar que estivera preso na garrafa e que é um espírito, se entrar e sair de novamente poderás fazer o que quiseres comigo. O Espírito orgulhoso de si entrou novamente na garrafa. O rapaz mais do que depressa fechou-a e o espírito ficou preso de novo. Mercúrio prometeu então ao rapaz uma recompensa se o soltasse. Ele de começo desconfia, mas decide arriscar e o solta. Ele ganha um pedaço de pano como recompensa. Disse Mercúrio: se passar a ponta do pano em qualquer ferida, está sára, e a outra ponta em qualquer ferro, este irá se transmutar em prata. Passou então em seu machado trincado que se transformou em pura prata.Poderia assim ser vendido para pagar seus estudos, pai e filho ficaram livres de todas as preocupações e o rapaz graças ao estudos e o pano se tornará um médico famoso no futuro.’’
Conto dos Irmãos Grimm.
Entre os principais objetivos dos Alquimistas, transformar metais em ouro e desenvolver o elixir da vida, havia um mais ousado, criar um humano artificial. A primeira menção de Homúnculo remete a Paracelso, muito embora a ideia de um ser criado pelo homem já fosse antiga, sendo mencionada pelos Judeus como Golem. O Homúnculo se diferencia por ser literalmente um pequeno ser humano, medindo apenas polegadas. Mas sua representação está além da tentativa de dar vida a um humano a partir de objetos inanimados, ele possui uma simbologia especial em nossa psique, bem refletida em Full Metal.
No episódio 40 – Homúnculo , é apresentada a história da criação do primeiro Homunculus, este foi feito a partir do sangue de Hohenheim, portanto um ser artificial, “um clone’’, um irmão. No conto dos irmãos Grimm não se sabe os motivos que levaram um indivíduo, que se imagina ser um Mago, um sábio, ou até um poderoso Alquimista a trancafiar o espírito de Mercúrio no frasco e enterrá-lo nas raízes do carvalho, do mesmo modo não sabemos nada sobre os motivos que levaram os Alquimistas de Xerxes a criarem um Homúnculo. Mas ambos os seres são espíritos dotados de grande intelecto e conhecimento e representam simbolicamente alguns aspectos de nossa psique.
Mercúrio, conhecido como Hermes pelos gregos e *Thot pelos egípcios, o Deus da linguagem, da escrita, do conhecimento, sabedoria, destreza, dos ladrões, do comércio, da riqueza e magia, o mensageiro dos Deuses, aquele que atravessa os mundos. Jung acredita que a figura de Mercúrio não desapareceu por completo, foi modificada, disfarçada pelos séculos até tempo atual. Na Alquimia sua imagem é de extrema importância, é o metal mercúrio que representa os opostos, a trindade, o hermafrodita, a água da vida. Na mitologia grega, Hermes já nasce com enorme precocidade, tendo deixado o berço logo ao nascer, foi até o pasto de seu irmão Apolo, pregou-lhe uma peça e roubou seu gado, logo após, com a linha do pelo das ovelhas e o casco de uma tartaruga, criou a
*Lira.
*Thot : É para os Egípcios aquele que criou a escrita, os hieróglifos, detentor de sabedoria extrema. Para alguns ele seria o próprio Hermes Trimegistos, pai do Hermetismo.
*Lira: Instrumento Musical de Cordas
Imagem Hermes e Lira
Na sequência Hermes, Thot e Mercúrio.
De extrema perspicácia é também o pequeno ser dentro do frasco, Homúnculo, ele é capaz de enganar o rei de Xerxes, para quem havia prometido, através de seu conhecimento, o segredo da vida eterna, entretanto o pequeno homem tomou a vida de todo o povo para conseguir um corpo para si. Ele também é responsável por instruir Hohenheim nos conhecimentos do mundo, o ensina a ler, escrever, sobre Alquimia e o universo.
O Homúnculo assim como Mercúrio, representam as potências e forças de nossa psique, são arquétipos, símbolos de conteúdos do inconsciente coletivo, que foram projetados na forma de Deuses, seres místicos e objetos mágicos. Hermes representa parte de nossa audácia e perspicácia, como também a capacidade mentirosa e enganadora da mente humana, a comunicação e manipulação de que todos somos dotados. Ele é a união e equilíbrio dos opostos.O homunculus é criado a partir de Hohenheim portanto representa seu interior, o símbolo de seu *Ego na série, a representação psíquica do Eu, um pequeno homem. Devemos lembrar que Hohenheim era um escravo, o Homúnculo como representação de seu ego conhece suas vontades, seus desejos íntimos, pois o Eu é aquele que deseja ser, conhecer a si mesmo.Quem instiga Hohenheim a ser um homem livre, ir além de seus limites é o pequeno homem que lhe fala, como o chamado de Mercúrio ao menino inocente que passeava pelo bosque. O Ego é aquele que se auto intitula Eu.
Na série é o Homunculus que dá nome ao escravo número 23, o intitula de Von Hohenheim.O nome tem um significado importante, pois ele traz uma individualidade, um reconhecimento do seu ser, a partir do momento que é “batizado’’ Hohenheim começa sua jornada de liberdade e individuação.
“Não quer ter liberdade e direitos Hohenheim?’’
Homunculus Full Metal Brotherhood
*Ego: Deve ser compreendido aqui, como o centro da consciência, aquilo que chamamos de eu, a parte de nossa psique que experiencia o mundo externo. Jung dá o nome de complexo do ego a essa estrutura.
Entretanto devemos lembrar da qualidade inerte atribuída a Mercúrio, a engenhosidade da trapaça, da enganação, afinal é também o Deus dos Ladrões. Zeus interroga Hermes por ter roubado o Gado de seu irmão, o mesmo negou diversas vezes, até que Zeus lhe obriga a prometer que nunca mais iria mentir; Hermes aceita, só que impõe que se daria ao luxo de omitir a verdade, ou seja, não seria obrigado a dizer a verdade por inteiro. O Ego por ser arquiteto de seu mundo, utiliza de estratégias e sagacidade de seu intelecto para que se mantenha na ilusão de controle absoluto da psique, pois o Eu deseja ser o centro da totalidade. Em Full Metal vemos que o Homúnculo engana a todos, para alcançar seus próprios objetivos, copia a imagem e semelhança de seu irmão e arquiteta um plano final, com objetivos mais obscuros que sua façanha anterior.
Diferente do Mercúrio da garrafa que estava preso fisicamente por uma barreira, o homúnculo necessitava de seu frasco, era uma prisão necessária, o recipiente é imposto a ambos, entretanto de forma diferente, mas tem o mesmo significado: Limite. A ganância do Ego, não está apenas em ser livre para conhecer, ele necessita auto-descobrir o seu ser, expandir sua garrafa. O grande pecado do Eu é o excesso, a chamada *Hybris para os Gregos. A consciência não se satisfaz em estar livre das amarras de seu inconsciente, o Eu deseja ser o centro, assumir o domínio e a força da totalidade, se auto proclamar Deus de seu mundo.
* Húbris ou Hybris é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, acometido originalmente contra os Deuses.
Personalidade Mana
Assim como Hermes se auto-proclama um Olimpiano, o Homúnculo se dá o título de Pai. Ele se nomina no mundo, como representante da figura paterna, aquele que apresenta o mundo e suas regras, o conhecedor e gerador, a essência masculina , a consciência pura, que tudo ilumina. Porém peca com o excesso, a arrogância que talvez tenha levado o ser desconhecido a selar Mercúrio em um frasco e enterrá-lo nas raízes do inconsciente.
A personalidade Mana é um conceito desenvolvido por Jung, ele especula que, a consciência e o Eu (centro do consciente) após assimilar os conteúdos do inconsciente, (Complexos, Persona, Sombra, Anima/Animus) reconhecê-los como autônomos e através de um ato “heroico” vencer os dragões de sua alma, deveria a partir desse ponto assumir a *Mana, o controle total da psique. O Eu poderia finalmente ser autônomo e ditar as direções sem grande interferência dos Arquétipos. Nesse momento surgirá então a figura do “Grande sábio’’, o sacerdote, aquele que domina a magia, conhecedor da sabedoria, dos elementos do universo, o salvador, com qual o Eu haveria de se identificar. Todavia essa seria uma “cilada”, uma vez que é novamente uma imagem arquetípica que emerge do inconsciente coletivo. O símbolo do Homem Deus, é o verdadeiro desafio, o detentor da Mana, que pertencia anteriormente a outras estruturas da psique inconsciente. A esse arquétipo, que surge por compensação do inconsciente, pela imposição da consciência perante o inconsciente, Jung dá o nome de personalidade-mana. Ele representa a tentação do Eu em se identificar como centro da psique, é a Persona do Poder. O complexo de poder já é o velho conhecido do Homem, ele atinge a todos que assumem cargos de grande importância e influência, é a imagem carregada de anos das relações de poder do ser humano, e gravados no inconsciente coletivo da humanidade. Jesus foi tentado pela a personalidade-mana no deserto, que lhe prometeu ser o rei do mundo, Buddha foi tentado por Mara, Deus da ilusão, que lhe indaga: “Você que chegou mais longe que todos, deseja ser meu Deus?’’.
*A Mana foi empregada aqui como analogia a energia psíquica, para o povo polinésio essa seria a energia espiritual dos seres vivos, a força de um grupo, que contribui para uni-los.
O Homúnculo após conseguir autonomia, elabora um plano para ser Deus, seu primeiro passo para identificação com a perfeição é se livrar dos sete pecados que assolam a humanidade, não é de se estranhar que o primeiro Homúnculo a ser criado a partir do original é o Orgulho. Este tem lugar especial entre os pecados. A famosa frase do filme Advogado do Diabo, onde o próprio diz que seu pecado favorito é a Vaidade/Orgulho, pois nos leva a cometer todos os demais, nos faz refletir sobre o poder dessa potência. A Hybris, o excesso, o pecado da arrogância perante os Deuses é cometido pelo Homúnculo Pai, que deseja abrir o portão da verdade do mundo e assimilar Deus, tornando-se assim o *Demiurgo. Diferente de seu irmão Hohenheim, que peregrina em busca de redenção, o Homúnculo cai nas artimanhas do persuasivo arquétipo da personalidade-mana. No penúltimo episódio do anime, a autora da série nos presenteia com incrível dialogo entre o Homúnculo e o verdadeiro Demiurgo.
Homunculus: – Por que não se tornou meu?
– Deus! Do que foi que não gostou de mim?
Demiurgo: – É por que você não acreditou em si mesmo, por isso não conseguiu o que desejava
Homunculus: – Eu queria me tornar o ser perfeito, queria saber de tudo no mundo, o que há de errado em querer isso? O que há de errado em desejar isso? O que há de errado em esperar por isso? O que você é? Qual seu nome? ‘
Demiurgo: Eu sou aquilo que vocês chamam de Mundo
Outra hora de Universo
Outra hora de Deus
Outra hora de verdade
Outra hora de tudo
Outra hora de UM
E por fim eu sou Você.
*Demiurgo: Arquiteto do mundo, Deus.
Individuação/Individualismo

Embora se origine do inconsciente, assimile parte de seus conteúdos, vença o domínio do mesmo sobre ele, o complexo do ego sofre por sua incapacidade de controlar tudo a sua volta. É um processo natural a busca do Eu pela sua individualidade, quem somos nesse mundo? Pergunta que todos fazemos a nós mesmos. Onde começa o outro e eu termino? Se pararmos para pensar, de fato, não somos apenas um conjunto de ações e sentimentos individuais, tudo é a soma de fatores externos a nós, esses muito mais enraizados que nossa própria vontade. A influência dos pais na vida de um adolescente por exemplo, ou da sociedade em que estamos inseridos, nunca estamos no total domínio das nossas intenções e sentimentos profundos. Esse caminho pela busca do nosso ser é tido por Jung como Individuação. O mesmo não pode ser confundido com individualidade. Individuação significa torna-se um ser único, ou, o realizar-se do si -mesmo, enquanto individualidade se refere a particularidades específicas do ser, algo íntimo, e último.
A individuação não leva ao individualismo, do qual prega a sociedade atual, onde as peculiaridades superam as necessidades coletivas, pelo contrário, é o reconhecimento do Eu, dentro do todo, do coletivo. Qual a sua parte do pedaço que vós cabe? Toda jornada da consciência, desde nascimento, a figura do herói, o enfrentar a si-mesmo é parte do processo natural do desenvolvimento da psique humana. O Homunculus Pai demonstra a figura do homem que segue pelo caminho do individualismo, abre mão do reconhecimento de sí-mesmo em busca da figura daquilo que chama de Deus. Ele como dito se associada a personalidade-mana, e assimila a figura do Homem-Deus, ele cai em sua própria armadilha, como aquela que o garoto utiliza para prender novamente Mercúrio no frasco.
“Você roubou seus poderes de outras pessoas,e apesar de ter nascido de uma pessoa, tudo o que sempre fez, foi se agarrar ao que chama de Deus.’’
Demiurgo Full Metal Brotherhood.
Quando abrimos mão de nossos sentimentos e projetamos nossas vontades e ações nos outros, estamos cometendo um sacrilégio com nosso ser. Adotamos verdades que não são nossas e nos escondemos atrás de máscaras, fingindo ser fortes, insuperáveis, conhecedores e até mesmo Deuses. No episódio 62 – Um contra-ataque feroz, fica claro alguns dos verdadeiros sentimentos do Homúnculo, que o mesmo escondeu em sua sombra.
” Ganância é isso que você queria estou certo? Sim você está certo, o que eu queria era, ter amigos como estes.’’
” Acho que seria feliz se pudesse sair desse frasco’’
Ao cometermos a Hybris, necessitamos de uma Persona, para manter a aparência de nossa ilusão, ela se associa a outros arquétipos e cria um mundo de símbolos, por onde o ego órbita e se esconde. O pequeno homem no frasco cria um corpo para si, entretanto o ser ideal que criamos, acaba sendo nossa prisão. O Homunculus nunca conseguiu se libertar de seu recipiente, pois não se realizou como indivíduo verdadeiro, ele utilizou a imagem de outros seres, projetou seus conteúdos em algo perfeito. Ele se fecha apenas em seu mundo, seu *Corpus Hermeticum.
*Corpus Hermeticum: Significa corpo fechado, a palavra Hermeticum
Olho por Olho
“O que desespera eles devidamente, para que não se torne prepotente, é a Verdade!”
Homúnculo Pai Fullmetal Brotherhood, falando sobre os humanos.
Somos aquilo que desejamos e projetamos no mundo, pois o homem cria seu próprio universo, ele é o arquiteto. Ao fim da Jornada o Homunculus se depara com sua verdade, da qual não escapamos.
“Então concederei o desespero a você também’’
Demiurgo FullMetal Brotherhood, falando diretamente com o Homunculus.
O pequeno homem no frasco é o símbolo de nosso complexo do ego, representa a nossa audácia e perspicácia, a sagacidade da mente humana, que deseja ser livre, todavia qualidades que devem ser usadas com sabedoria, pois o homem é um ser dotado de consciência sobre as coisas. Por esse motivo o ‘’portão da verdade’’ da série é algo pessoal, ele age de acordo com nossas verdades, devemos nos perguntar então: Qual o mundo que está criando para si mesmo?
No próximo capítulo da série será explorado o princípio alquímico: Ouroboros. Não perca! Transmute sua Alma!
REFERÊNCIAS
Arakawa, Hiromu. Fullmetal Alchemist. Viz, 2005.
Hermes. Corpus Hermeticum: Discurso De Iniciação: a Tábua De Esmeralda. Hemus.
Jung, Carl Gustav. Estudos alquímicos. Vozes, 2002.
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