Hércules em seu primeiro trabalho enfrentando o Leão de Neméia
Dando continuidade ao artigo Naruto Clássico – O que nos torna heróis, essa segunda parte explora o desenvolvimento do personagem em sua fase de despertar de consciência, os desafios e conflitos do caminho do herói em sua longa jornada em busca de si mesmo. Caso não tenha lido a primeira parte do artigo Clique Aqui! e confira. O Artigo a seguir contém Spoilers! Fique ATENTO!
Até o presente momento a perspectiva de todo universo criado por Kishimoto era através da visão de Naruto, só em Shippuden que são apresentados elementos além daquilo que ocorre em volta do herói, abrindo espaço inclusive para o desenvolvimento de outros personagens.Tomamos ciência dos Jinchurikis, de outras vilas, da política do mundo Ninja, da histórias de clãs , grupos terrorista e a origem do Chakra, o universo aqui se expande bastante. O próprio personagem principal, se dá conta do complexo mundo em que vive e aos poucos amadurece seu conceito de Hokage. Na série clássica nos colocarmos no papel de Naruto e aceitamos as suas verdades, entretanto em Shippuden se abrem as cortinas e são apresentados diversos temas e conflitos para além do menino raposa, nossa consciência evolui em percepção junto com a de Naruto, mérito de uma excelente narrativa do autor.
Pelo mesmo motivo foi omitido de propósito até o momento um aspecto importante de toda jornada heroica, em todos os contos existe um contraponto do herói, aquele cujo os valores são opostos ao protagonista. O antagonista, o alter ego do herói, seu irmão- sombra, segundo Jung, a sombra é um arquétipo, é a soma de todos os conteúdos ao qual reprimimos, omitimos, desconhecemos em nos, aqueles cujo negamos ou distanciamos de nossa consciência, sejam por traumas ou imposições, são conteúdos dos quais não queremos contato, pela obscuridade que representam. Porém tais substâncias não desaparecem, se mantém latentes no inconsciente, esperando o momento certo para surgir a luz da consciência. Grande parte da jornada heroica se trata sobre o enfrentamento do herói com sua sombra, que é personificada de diversas formas dependendo do conto. Em alguns contos, como de Hércules, Ulisses, Rei Arthur, Demolidor, Batman a sombra se manifesta pela própria dualidade do herói, onde o mesmo é visto não apenas como o salvador, digno, ético, mas também como o excluído, bastardo, perigoso, descontrolado e rebelde. Essa dualidade corresponde aos males presentes dentro de todos nós e o desafio de convivência e reconhecimento dessa sombra. Outro tipo de manifestação nas histórias é o irmão/sombra, um indivíduo de igual força quando comparado ao herói, entretanto com idéias opostas ao mesmo, o que gera um conflito, que se estende até o fim da trama, e com muito pesar encontra seu fim em um combate mortal, cujo desfecho se divide em duas possibilidades: a morte do irmão-sombra ou o empate que leva a reconciliação. Gilgamesh e Enkidu são um exemplo de combate do qual vigorou em um forte laço de amor.
Gravura representando Gilgamesh a direita com seu irmão guerreiro Enkidu a Esquerda
Na série praticamente toda trama se fixa no objetivo de Naruto de se tornar Hokage e a busca por trazer Sasuke de volta a vila. Esse personagem, representa seu irmão/sombra, um alter-ego, que no final busca o mesmo objetivo de Naruto, porém através de outros meios. O arquétipo de herói como dito no artigo anterior, surge como uma força que nos repele ao mundo, é o caminho da humanidade, o desprendimento do inconsciente e impotência ao qual vivemos na infância e adolescência, entretanto o aspecto sombra desse arquétipo surge pelos nossos medos, receios, ódio, repressão e exageros que temos contato nos primeiros anos de vida. A dualidade do arquétipo surge desse embate, pois o herói dotado de força tem a capacidade de reproduzir esse círculo de ódio e desprezo ao qual passou, através de uma megalomania incontrolável e a busca por subjugar os demais pelo seu poder. Como também tem a capacidade de quebrar esse paradigma aceitando a si-mesmo e aos outros, utilizando seu poder de modo construtivo.
Ao analisarmos o passado de Sasuke veremos pontos semelhantes com de Naruto, ambos são órfãos, os últimos de seus clãs restantes na vila da folha, isolados pelo preconceito. O que os torna diferentes são as escolhas ao longo da série. Sasuke abraça o ódio e busca pelo poder e vingança, enquanto o menino raposa utiliza sua energia para buscar aceitação e respeito através do reconhecimento de sua alma, seu ‘’jeito ninja’’. Ambos passaram por experiências similares, como cada um lidou com sua criança interna que os difere.
Sasuke e Naruto
O antagonista entretanto possui seu valor, nos identificamos com sua ações, pois exprimem aquilo que existe dentro de todo ser humano, a sombra, o vilão abraça a seus medos, sua ira, o poder, a vaidade.A tentação por ceder a esses impulsos é presente em todos nós, a todo momento da vida, por esse fato o antagonista se torna tão ou mais carismático que o protagonista da trama, criamos empatia por sua história. Sasuke representa todo ódio e medo que Naruto omitiu em sua sombra contra sua vila,outro exemplo da sombra de Naruto é Obito, o icônico vilão da história ,representa a jornada de Naruto se tivesse optado seguir pelo caminho da sombra do herói, cedendo aos conteúdos obscuros, não é a toa que o design dos personagens em sua infância são semelhantes, ele demonstra o medo de naruto em ser dominado por seu lado sombrio. O irmão- sombra nos contos representa tudo que não vemos no herói, pois o mesmo é sempre bondoso, correto, amigo, simpático, protetor, tal modelo de ser humano perfeito, o antagonista é ao contrário, não despoja de tantas qualidades, muito menos se importa com essas, sem escrúpulos, guiado por seus desejos e medos. Toda força aplicada gera em sua direção oposta um efeito de igual escala, portanto quanto mais heroico nosso personagem, mais vil será sua sombra.
A esquerda Obito criança e a direita Naruto
Não devemos entretanto delegar a sombra apenas qualidades negativas, nela se esconde o maior tesouro do herói. Muitos aspectos positivos são reprimidos também, Sasuke por exemplo, possui diversas qualidades, físicas e psíquicas que faltam em Naruto. O amadurecimento em relação ao conceito de Hokage é a batalha interna que Naruto trava ao decorrer de toda série, que é transferida na figura de Sasuke, através da pergunta: O que é ser um Hokage? É possível afirmar que só teve a total certeza de sua resposta ao enfrentar Sasuke no final da série. A sombra nunca é vencida, ela deve ser assimilada, reconhecida como parte de nossa psique, de nós mesmos, que só permanece obscura se a negarmos, entretanto nunca omissa, pois esta se faz aparecer, muitas vezes pela transferência de seus conteúdos em outras pessoas com quem nos relacionamos (quem nunca criticou outra pessoa por fazer exatamente aquilo que você detesta, porém também faz) o confronto com a sombra é algo diário e eterno, sempre haverão conteúdos que deveremos lidar ao decorrer de nossas vidas.
O confronto com a sombra é um épico emocionante , pelo reconhecimento de ambas as partes de nossa alma, é onde a mesma fica mais evidente e clara para nossa consciência, na jornada de Naruto esse desfecho é digno de uma odisseia. Esse embate necessita de ativação do arquétipo do herói, pois somente ele pode mergulhar no desconhecido, no Abismo que nos espera. Todavia a psique é uma estrutura de energia parcialmente fechada, e ao movimentar seus conteúdos inevitavelmente movimentamos outros arquétipos importantes para o equilíbrio da mente.
Vale do Fim.
A primeira parte desse artigo é a apresentação do herói, o que o caracteriza como tal, nessa segunda parte o ponto chave é o desenvolvimento da personalidade do mesmo, o caminho em busca de sua individuação, processo de reconhecimento do si-mesmo, seu verdadeiro eu, não se trata mais de condições das quais estamos imersos durante a infância e adolescência, onde não temos total controle, esse ponto da Jornada se caracteriza pelos nossos desafios e as escolhas que tomamos perante eles, portanto junto ao confronto com a sombra, o processo de desenvolvimento ocorre com o enfrentamento da Anima/Animus e a Persona, arquétipos igualmente importantes de nossa psique.
Segundo a teoria de compensação de Jung, todo conteúdo movimentado para luz da consciência, deve gerar compensações para manter o equilíbrio da psique, pois grande carga mental foi direcionada do inconsciente, o inverso também é verdadeiro. Embora separado por nomes e estruturas os arquétipos da Sombra, Anima/Animus e Persona fazem parte da mesma totalidade, entretanto assumem na psique diferentes papéis. Naruto antes de caminhar para o confronto final com sua sombra, passou por diversos processos, mudanças internas, que lhe permitiram seu crescimento pessoal. O desenvolvimento do Rasengan Shuriken(Golpe Clássico do personagem) foi parte do processo de reconhecimento de seu Pai, e um presente de seu Pai Primordial, nesse momento da série o personagem se isola para tentar criar um novo jutsu fatal, colocando o herói em outro categoria de poder, é também o mesmo momento que Naruto toma conhecimento de quem foi seu Pai, que para sua surpresa, foi um Hokage. Portanto aqui a figura do Pai pessoal e primordial se misturam. A presença do pai nos mitos é sempre importante, personagem ao qual o herói deve se impor e assumir seu lugar, como Zeus ao destronar Kronos. Entretanto não devemos esquecer a dualidade da figura dos pais, o pai pessoal é a figura responsável por apresentar o mundo ao filho, ele é quem o insere na sociedade, lhe ensina os dogmas, regras, costumes e rituais, ele mostra a objetividade do mundo, os valores morais representam esse arquétipo na psique humana. A ingenuidade de Naruto perante toda estrutura social que vive se deve ao fato de não possuir um pai pessoal. A imagem do herói aparece para romper os antigos costumes, este arquétipo deve trazer o novo, esse é o desafio de Naruto em relação ao Rasengan e a figura do Hokage. O Rasengan é uma força original, criativa, que Naruto herdou de seu pai, seu objetivo nessa etapa é criar algo novo com essa energia, enquanto ao longo da série tem a missão espiritual de trazer algo novo ao mundo ninja, como um líder, um salvador. Portanto esse ponto da série retrata o início de sua jornada como herói, onde começa o desenvolvimento de sua personalidade e o reconhecimento do arquétipo do pai como símbolo a ser superado, para trazer o novo.
Rasengan vs Chidori
Todavia para impor uma mudança radical no mundo o herói necessita encontrar sua força interior, que lhe trará energia necessária para enfrentar os desafios em seu caminho. A dois momentos na série, o treinamento para alcançar o modo Sennin e o confronto com Kurama, onde conquista o modo Kyuubi, que Naruto passa por uma mudança radical em sua força interior. Ambas as forças têm uma característica comum, são energias essencialmente femininas, relacionadas, como explicado no artigo anterior a figura da mãe pessoal e primordial de Naruto. A Anima é segundo Jung a parte da psique presente no homem que representa seu lado interno feminino, é um arquétipo da figura da mulher registrada ao longo de milhares de anos na mente da humanidade. Uma das conquistas do herói em seu caminho é o domínio, o reconhecimento de seu lado feminino, representado por qualidades essencialmente femininas das quais deve adquirir para completar sua jornada. Um dos primeiros contatos de Naruto com sua Anima é quando o mesmo aprende a sentir a energia natural, da natureza que o rodeia, é necessário um treinamento introspectivo, meditativo, intuitivo para alcançar tal estágio. Onde até o momento Naruto possuía um estilo de luta, expansivo, criativo, expressivo, com características de essência masculina(Animus), nesse momento ele necessita do sentir, para conexão com a natureza. Como já dito o próprio Chakra representa na série a figura da mãe primordial, pois este é a essência da vida, de seus seres, o arquétipo da mãe natureza. A abundância do Chakra de Naruto é devido a genética herdada do clã de sua mãe pessoal, e não é a toa que a primeira pessoa na série a libertar uma parte do selo que continha o poder do personagem principal foi uma figura que embora masculina tem traços e essências da energia feminina.(devemos nos atentar ao feminino e masculino como essências de energia, semelhante ao conceito de Yin e Yang, sem qualquer discriminação por gênero sexual ou pensamentos ideológicos). Portanto o primeiro contato significativo do menino raposa com sua Anima na série se dá no domínio do modo Sennin, é claramente visível após esse período o amadurecimento de Naruto. Entretanto a algo de selvagem, indomável e de poder destrutivo que nosso herói nega, que ao contrário da Anima mencionada anteriormente cujo a existência é construtiva, este ser representa os males da parte negativa da Anima.
Naruto modo Sábio – Capitulo 418 Mangá
A raposa na cultura japonesa é representada como o demônio mais poderoso e perigoso de todos, é equiparável ao arquétipo do Dragão para os ocidentais, porém diferente a figura do Dragão, a raposa possui um caráter feminino nítido, em alguns contos ela até se disfarça de mulher para enganar os seres humanos. Na série a Kyuubi, o demônio raposa que habita no interior de Naruto é apresentado como um ser de imensa energia criado a partir do Chakra, é considerado uma força da natureza. Para conseguir utilizar o poder do demônio de nove caudas, nosso herói passa pelo maior momento de introspecção da série, onde deve perdoar seus pais pessoais. Aceitando a figura da mãe Naruto consegue se conciliar e aceitar em si Kurama como parte de seu eu. O reconhecimento da Anima, tanto positiva como negativa é de extrema importância no processo de individuação, esse arquétipo difere, pois possui certa autonomia em relação à consciência, como uma voz interior que age de acordo com as próprias vontades e desejos. Constelada negativamente essa figura pode nos colocar em situações complicadas, como no caso de Naruto que perdeu seu controle em alguns momentos da série. Em contos e mitos o contato do herói com esse arquétipo se dá muitas vezes pela conquista da donzela, a presença do feminino no universo patriarcal é um caso de conflito. Pelo processo natural de seu desenvolver o adolescente constela o arquétipo do herói que o desprende do domínio da mãe, pois necessita agora a buscar sua própria personalidade, porém esse desprendimento é um confronto intenso, onde o homem para cumprir seu papel social como mesmo deve negar, abdicar suas características relacionadas ao feminino. Essa ‘’castração’’ com a mãe, impele a um sentimento de culpa, onde o homem bloqueia sua conexão com seu feminino, em grande parte devido ao modelo social em que está inserido. Portanto a figura da mãe, como primeiro contato com o feminino é de grande importância e influência em como irá se dar a relação do homem com sua Anima. A Kyuubi foi herdada por Naruto por sua mãe como representação do interior feminino do herói, e só com auxílio dela que o mesmo consegue se reconciliar com seu interior, em um dos momentos mais emocionante e marcantes da trama.
A esquerda Kitsune o demônio raposa e a direita Kurama Bijuu de Naruto
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