A lenda do herói, Uzumaki Naruto

 

 Naruto Clássico- O que nos torna heróis? 

 Naruto é um anime que alcançou grandes proporções, sendo um sucesso não somente em sua terra natal, como por todo o globo terrestre, ou planície (como preferir). O anime narra a história de uma criança que nasce em um universo onde a sociedade é baseada em Ninjas, cada país possui sua vila e clãs ninjas específicos que a lideram e cumprem missões, parte essencial da economia local. Naruto o personagem principal da trama, é entretanto um menino isolado do restante da vila, isso pelo fato de que em seu corpo foi selado um antigo demônio, de nome Kyuubi, que ameaçou a vila anos atrás. Órfão,delinquente e excluído, Naruto decide traçar o caminho de um Ninja, para alcançar o reconhecimento e respeito de seus companheiros.Toda história e seu desenvolvimento conquistou uma legião de fãs, não é necessário dissertar muito sobre uma trama tão famosa, pois a grandeza da obra não cabe em resumos, o que nos interessa a princípio é o desenvolvimento do enredo principal, onde Naruto é um modelo de herói moderno,um mito vivo, cujo coração sempre aspira ao correto, o bem e a humanidade, é dentro dessa ótica que iremos analisar o contexto da obra de Masashi Kishimoto.

O Artigo a seguir pode conter Spoilers! Fique ATENTO!

 O herói é um arquétipo importante dentro da história humana, todas as culturas possuem lendas e contos de seus heróis, cujo os feitos, transcende a um humano comum. A figura heroica representa para psique a força de ação da consciência, nossa capacidade de enfrentar as potências do  mundo que nos cerca, e as próprias forças inconsciente da alma. Esse arquétipo é ativado quando passamos por situações onde é necessário uma grande força de ação e movimento, como por exemplo na adolescência, momento de extrema mudança e confrontos internos e externos, fase que necessita de força para superar os conflitos e buscar autonomia. Lembrando que o Arquétipo é um símbolo, uma imagem coletiva primitiva da humanidade,o Herói representa na psique humana a personificação do desejo e a figura ideal do ser humano. É relativamente fácil identificar o Herói nas histórias , alguns pontos o caracterizam, como o nascimento diferente e conturbado, os pais divinos, a missão e seus desafios, esse arquétipo representa o caminho de autodescoberta da consciência em reconhecimento ao seu verdadeiro eu, é a energia que impulsiona o nosso desenvolver e Uzumaki Naruto é um exemplo claro do herói clássico.

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Martin Wiegand (1867-1961) – Parsifal, O cavaleiro do santo Graal
Como dito todo herói possui características que o identificam, Naruto teve um nascimento conturbado, sua mãe detentora de uma força interna Divina, é sequestrada com intuito de roubarem seu grande poder, momento conveniente, uma vez que ao estar grávida o selo que prende a *Kyuubi em seu corpo se encontra mais fraco. Entretanto após um embate entre o Pai de Naruto e o sequestrador misterioso, o Líder da vila sai vitorioso, salva sua mulher e filho. Infelizmente como toda tragédia de nascimento do herói, sua mãe morre ao dar a luz, e seu pai se sacrifica para selar o demônio dentro do corpo do filho. O nascimento incomum, que carrega algo de sobre-humano é uma característica clara do herói, e de extrema importância, pois os fatos que ocorrem antes de seu nascimento determinam boa parte de sua jornada e formam a essência do mito. É possível citar casos clássicos da literatura como exemplos: Édipo, que teve seu destino selado graças a uma profecia dita ao seu Pai, cujo se tivesse um filho com sua mulher, este lhe tomaria o trono e deitaria com sua esposa. Ao nascer Édipo então é destinado à morte pelos seus pais, que dão a missão a um pastor, de se livrar da criança nas montanhas para ser comido pelos animais. O pastor perfura seus calcanhares, envolve uma correia no buraco que fez e passa a carregar o bebê nas costas como se fosse uma caça, entretanto, ao chegar nas montanhas Édipo sorri para o pastor, este comovido hesita e entrega a criança a um outro pastor que passava pelas redondeza, que irá garantir que a mesma viva. Ou então um clássico indiano sobre o nascimento de Ganesha, cujo a cabeça foi arrancada pelo Pai e após substituída pela cabeça de um elefante. E o que dizer sobre o recém nascido Moisés, jogado ao rio para que pudesse sobreviver, entretanto nem todos os nascimentos são trágicos, Buddha e Jesus Cristo são exemplos de nascimentos cujos forças numinosas se encontram presentes e embora não tão conturbados, é clara a diferenciação desses nascimentos, onde uma força sobre-humana ou divina está envolvida. Imagem de Nascimento de Édipo sendo carregado pelas correias

 
Édipo sendo carregado pelos pés.

Infelizmente não é somente o nascimento do herói constelado por perigos, o decorrer de sua infância e adolescência também é cheio de angústias e desafios. Naruto é praticamente abandonado em sua vila, distante de todas as demais crianças e mal visto pelos adultos, bem como sua clara dificuldade em dominar a energia do Chakra, transformando ele em um péssimo aluno, considerado sem talento, humilhado pelos demais colegas. Essa narrativa triste do início de vida demonstra simbolicamente nossa impotência perante ao mundo em nossos primeiros anos de vida e a promessa de um dia superar tal condição. A figura do herói representa a própria a humanidade, ao nascer somos jogados em um mundo de percepções e sensações, das quais não compreendemos, em um universo desconhecido, nossos próprios sentimentos se tornam confusos. Por maior o aporte de uma mãe e pai, o íntimo de nosso espírito é incompreendido, nenhuma pessoa pode nos consolar em relação as nossas dores e medos, cabe a nós o amadurecimento e desenvolvimento de nossas vidas, a compreensão de nossos sentimentos. A imagem do herói e sua infância de perigos demonstra esse estágio da vida. Sua figura é a força e promessa de um dia conseguir superar essa condição, em termos psicológicos o consciente se encontra imerso no vasto inconsciente sem a compreensão do todo, e do que ele mesmo representa, luta para buscar sua individualidade. O enredo de Naruto clássico se trata sobre a ingenuidade e impotência dele perante aos diversos acontecimentos de sua vila, ele não é capaz de salvar seu amigo, de ter atenção de sua ‘’crush’’,não compreende a estrutura política, econômica, social da vila e não respeita os costumes da mesma, essa é a realidade de sua juventude, o abandono e impotência são características do processo de infância da jornada simbólica do Herói, que representa a nossa jornada de vida.

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Naruto Pixando o Monumento dos Hokages – Mangá Capítulo 1
 Essa narrativa que encontramos em diversos contos nos serve de inspiração e ativa o arquétipo do herói em nós, a superação das dificuldades e o modelo de ser humano ideal é o que o difere dos demais personagens da trama. Essa força interna nos compele a frente, para superarmos nossa própria condição em busca dos nossos desejos e vontades, o arquétipo do herói é temido pois supera os medos e firma sua autenticidade no mundo, ele tem a coragem para seguir suas convicções, por mais impossíveis que pareçam, superando o julgamento externo, é o caminho em busca da individuação, o ímpeto da realização pessoal, o encontro com o Self. Ao final Jesus seguiu suas convicções até o fim, como também Sócrates, embora suas sentenças de morte já tivessem sido determinadas, Parsifal foi em busca do Graal embora, ser ciente que jamais havia existido um homem que voltou ao castelo do rei pela segunda vez, Gilgamesh foi a floresta distante enfrentar o terrível Humbaba mesmo sabendo que talvez não fosse voltar com vida e Naruto nunca desistiu de se tornar Hokage, embora todos os contras em seu caminho.

 As características da imagem primordial do herói os torna carismáticos e fascinantes aos nossos olhos, essa representação de Naruto como um mito vivo tem grande influência no imaginário infantil, uma vez que sua narrativa é um processo vivido, sendo até objeto de pesquisa, no trabalho de Doutorado: Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil (Noronha 2013) a autora disserta sobre a importância da figura do herói dos mangás e animes, nos processos iniciáticos de crianças e adolescentes da rede pública de ensino em São Paulo, sua tese conclui que esse simbolismo, presentifica o arquétipo do herói no imaginário das crianças e pode ser utilizado como ferramenta pedagógica nessa fase da vida. Portanto fica clara a força e importância desse símbolo em nossas vidas, bem como sua aplicação prática.

Necessita-se destacar outro fator da infância do menino raposa e de grande importância psicológica em toda narrativa heroica, a problemática dos duplos pais. Naruto é um menino órfão, não conhecendo nem ao menos a história que o antecede, por essa ausência dos pais pessoais suas fontes de inspiração acabam sendo seus professores que o acompanham ao longo do tempo, Iruka, Kakashi e Jiraya, substituem o pai físico, representam a figura arquetípica do pai, entretanto antes mesmo desses mentores já havia uma figura interna que representava para ele o modelo de homem e ser humano perfeito, o grande Hokage, o líder da vila. É comum ao cânone do mito do herói, a figura de pais divinos, primordiais, praticamente todo herói grego nasceu de um Pai ou Mãe celestiais, Deuses do Olimpo, como o caso de Hércules, filho de Zeus, Aquiles, Perseu. Os arquétipo do Pai e Mãe, são de extrema importância no desenvolvimento do ser humano, é o primeiro contato com algo externo a nós e representam dois polos de energia diferentes. Muitos são os estudos de psicologia baseados na relação pais/filhos nos primeiros anos de vida da criança, Freud foi um precursor no assunto, teorizando que os problemas e dificuldades que temos como adultos advém da infância e tem ligação com a relação entre pais e filhos nessa fase da vida. Entretanto Jung e seus sucessores propõe uma ligação simbólica com essas figuras, por ser uma imagem primitiva, esse arquétipo já está registrado em nossa psique desde nosso nascimento, portanto a imagem dos pais pessoais é modelo, um símbolo. Quanto maior a distância entre o arquétipo e um objeto físico ou pessoal, a projeção do mesmo será em algo cada vez mais suprapessoal. No caso de Naruto a figura ideal que representa o arquétipo do Pai e toda a sua extensão é a figura de Hokage, líder protetor da vila, aquele pelo qual Naruto aprende sobre o mundo, pois essa figura representa o mundo. Por esse motivo nosso protagonista tem o objetivo de se tornar líder da vila, toda sua visão de ética e moral vem da posição de Hokage, lógico que ao longo do desenvolvimento da trama, os motivos ganham outra forma e visão, pois a perspectiva do personagem se torna mais madura ao decorrer da série,mas nesse momento inicial do anime a uma forte relação entre esses fatos.

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A esquerda o Terceiro Hokage com sua invocação Enma A direita Zeus, ao lado de sua Águia de nome Aquila
 
 O arquétipo da mãe será o último ponto explorado nessa primeira parte do artigo, pois a ligação entre esse símbolo e o herói é o que determina o ápice de toda trama. Embora pouco explorada na série Kushina tem papel chave, pois ela é a Jinchuuriki da Kyuubi antecessora a Naruto e nativa do clã Uzumaki, praticamente toda grande quantidade de chakra que o herói possui é herança de sua mãe. Portanto aqui o papel da mãe primordial, a imagem da grande mãe é ocupado pelo Chakra, a própria energia vital que os Ninjas utilizam em suas técnicas mortais. A mãe nos mitos heróicos sempre representa uma ligação clara com o transcendental, se manifesta de modo transpessoal, sendo essa figura o próprio ser Divino ou a esposa de Deus. Nos contos existem heróis cujo as Mães são seres divinos, ou que conceberam através deste. Entretanto o arquétipo da mãe, possui dois grandes lados, um a grande mãe, acolhedora, protetora, divina e no outro o Dragão maligno, as profundezas, o leviatã que deve ser derrotado pelo herói. Gaia a mãe terra, no mito de criação grego é quem concebe seus filhos e os auxilia a livrá-los da dominação de seu Pai, porém é a mesma que cria os titãs e os instiga ao confronto com seus irmãos Olimpianos, Tiamat a Deusa criadora Suméria, representa o oceano, o inconsciente, a Mãe, entretanto é o mais feroz dragão dos contos, sua fúria a faz entrar em guerra contra Enki o herói da história . É claro nas lendas a dualidade da grande mãe, é essa outra face do Chakra que Naruto enfrenta como dragão final de toda a série, não é a toa que a figura do Boss final é uma mulher, reconhecida como mãe por Zetsu e Deusa pelos humanos.
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A esquerda Kaguya , mãe do Chakra A direita a Virgem Maria
 
 A mãe é o primeiro contato que temos com o sexo feminino, grande parte do arquétipo da Anima é construído através dessa relação, a caminhada de Naruto é sobre compreender a sua alma, seu aspecto feminino, a energia Yin, a nove caudas dentro dele. Entretanto não irei focar nesse momento na relação da Anima de Naruto com a Kyuubi e sua Mãe(esse é assunto para segunda parte do artigo), o que é importante visualizar agora é: Em Naruto a presença de pais primordiais (arquétipos que representam as figuras paternas), é caracterizada, de um lado ao Hokage, figura atribuída ao Pai, o objetivo de sua vida, o espírito, a criatividade, a ação e a vontade do herói está relacionada a ele. Enquanto que a figura da mãe divina é mais abstrata pois se trata do interior da alma, da intuição, do feminino, da Anima do personagem, a esse aspecto é atribuído a sensibilidade de Naruto ao tratar seus amigos e suas relações pessoais. É interessante relacionar que o mesmo não tem como alcançar seu objetivo sem antes se conciliar, dominar essa energia interna, é só observar todas as vezes que o menino raposa obteve grande poder para superar seus adversários, sempre se antecedido por um momento de introspecção.

 Agora o enredo inicial está completo, a tragédia do nascimento, a infância difícil, os pais divinos que o guiam e um objetivo a alcançar, esses são os elementos iniciais da série clássica. É somente ao assistir a parte clássica que o leitor/espectador cria a empatia necessária para que acompanhe o resto da história (quem acompanha sabe como foi penoso esperar todos esses anos o desfecho final). É nesse começo que são apresentados os elementos e personagens que dão vida a odisseia de Naruto . Pois o herói, como dito, representa a nós mesmos, a ação, a jornada de nossa consciência em busca de seu processo de individuação, de confronto com Inconsciente desconhecido, ao assistir o caminhar de desenvolvimento do personagem, projetamos nossa imagem, sentimentos e aspirações, ocorre um processo de identificação, esse é o poder do mito. Na continuação do artigo irei abordar a série Shippuden, analisando como Naruto lida com sua anima, enfrenta o dragão no ápice da trama e o desenrolar do desfecho com sua Sombra.

Espero que tenham gostado, seguimos em frente! Para conferir a segunda parte desse artigo Clique Aqui!

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Naruto isolado de seus companheiros de turma – Mangá Capítulo 1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Campbell, Joseph. O herói De Mil Faces. Pensamento,
2010.
Jung, C. G. (Carl Gustav). O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2008.
Jung, C. G., et al. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
Kishimoto, Masashi. Naruto. Viz, 2008.
Müller, Paschoal. O herói: Todos Nascemos Para Ser heróis. Cultrix, 1992.
Neto APT; Silva FA; Ribeiro IRG. Iconografia do humor presente no anime Naruto: representação gráfica dos ícones humorísticos da animação nipônica.Periódicos Ufpb,2018.
Neumann, Erich. História Da Origem Da consciência. Ed. Cultrix, 1995.
Noronha, F.S. Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil. Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, 2013.
Oliveira, Carlos Daudt de. A epopéia De Gilgamesh. Martins Fontes, 2001.
Vernant, Jean-Pierre, and Rosa Freire D’Aguiar. O Universo, Os Deuses, o Homens. Companhia Das Letras, 2005.
 

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